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AINDA LEMBRAMOS
PORQUE MEMÓRIA É CONSTRUÇÃO
Ainda lembramos, porque a memória é construção
TEXTO CURATORIAL POR HORRANA DE KÁSSIA SANTOZ
Michel Cena7 é um artista que investiga a cidade, a vida urbana, a sua presença e as relações nesse espaço através da pintura e da palavra. Assim, o projeto "Despacho da Cor e da Palavra", bem como a presente exposição é, em certo sentido, um ato de afirmação e uma tentativa de reconfiguração de sua identidade artística, que evoca não apenas o significado de "despacho" como entrega ou oferta, mas como um ritual de passagem, um meio de deixar para trás uma imagem unidimensional de si. A exposição é composta por um conjunto diverso, entre, telas, desenhos e objetos, e por uma programação de diálogos com agentes e parceiros históricos, que acontecerá ao longo do período da mostra, apresentando a versatilidade da sua produção, seja no campo da literatura, na poesia, como nas artes visuais.
A obra de Cena7 está enraizada em sua experiência de vida, mas ela também se expande para um universo mais amplo de referências e significados. Na sua pintura, a presença dos signos e saberes do candomblé, de insetos e outros seres alados, de flores, máscaras e garrafas cria paisagens oníricas que remetem à profunda relação entre o ser humano e a cidade. A cidade, que para ele é um local de encontro, um espaço onde a arte pode ser um meio de contato, também é onde ela se confronta com a necessidade de ser compreendida além dos seus limites. Seus trabalhos mais recentes incorporam tecidos pintados, como mantos em seus personagens, um gesto que pode ser visto como uma homenagem ao trabalho manual, como os bordados feitos por sua mãe. A cor salta da tela, adquire um caráter tridimensional e se torna um veículo para expressar complexas interações entre memória, identidade e narrativa.
Vanessa Raquel Lambert de Souza, em seu artigo "Poéticas negras e representatividade: caminhos para pensar processos criativos em/sobre arte," ressalta a importância de se considerar as geopoéticas presentes nas produções de artistas negros. Argumentando que tais produções são frequentemente relegadas às exposições de caráter científico ou histórico, em vez de serem reconhecidas como parte integrante do universo vivido e criativo da arte visual, afirma a autora. A trajetória de Cena7 pode ser entendida dentro deste contexto: sua arte não é unicamente uma expressão de sua identidade como homem negro, é uma exploração de sua relação com a cidade, com a cor e com as diferentes formas de visualidade.
A cor e a palavra compõem uma relação estrutural na obra de Cena7. A cor passa por uma compreensão da materialidade da pintura e da relação da cor com o espaço. O artista vê a cor não apenas como um elemento estético, mas como um componente ativo na construção de narrativas e no estabelecimento de espaços sensoriais. Em Ainda lembramos, 2023, obra exemplar para essa reflexão, Cena7 enuncia a ideia de que a cor é personagem, que manifesta sentido e pode "saltar da tela", ocupar o espaço, transformando o ambiente e sentido retratado. Essa abordagem articula-se com a compreensão, onde a cor não se limita à superfície da pintura, mas se expande para incluir o espaço tridimensional e a experiência do espectador. Também é evidente em suas obras, que os títulos fundam mais uma materialidade, que também são uma forma de despachar as inquietações e angústias que permeiam sua jornada como artista, funcionando como um meio de cura e transformação. Ainda lembramos, é uma afirmação coletiva, um consenso, é vocação e propósito, porque memória é construção.
Ao mesmo tempo, Cena7 questiona o significado de despachar. Sua arte é um ato de entrega, um despacho que carrega consigo os signos e as pistas de sua existência. O despacho não é apenas um ritual religioso particular, individual ou uma oferenda; é um processo de tornar visível aquilo que é invisível, de dar forma e cor às experiências e histórias que habitam sua mente e sua alma. Nesse sentido, a exposição "Despacho da Cor e da Palavra" pode ser vista como um espaço onde Cena7 compartilha suas reflexões sobre identidade, memória e a relação entre arte e cidade. É uma afirmação de sua condição como pintor e uma declaração de que sua obra, e sua memória, vai além dos limites e territórios previstos
II
A obra de Michel Cena7 emerge como um ato de resgate e construção de memórias que resistem à invisibilidade. Suas pinturas são despachos, oferendas que transcendem a superfície da tela para instaurar diálogos profundos com o tempo e o espaço. Michel encontra na cor e na palavra os elementos necessários para invocar um passado que, embora presente nos portões, nas ruas e nos corpos, muitas vezes permanece desconhecido. Ele evoca símbolos e narrativas que se enredam em sua trajetória pessoal e coletiva, criando um ecossistema visual onde a história negra, em sua multiplicidade, pode ser vivida, sentida e compreendida.
A exposição "Despacho da Cor e da Palavra", Cena7 apresenta a cidade como um organismo pulsante, tal como uma tela em branco à espera da expressão de suas experiências e inquietações. Não somente pintar, mas desterrar e libertar a identidade, revelando os traços, cores e signos que compõem sua jornada. Sua arte é um encontro entre o visível e o invisível, onde a cidade se torna palco para as histórias que desafiam o esquecimento. Ao lançar mão da cor como narrativa, Michel infunde suas obras com uma fluidez que atravessa a memória pessoal e coletiva, transformando-as em mantos de ancestralidade e resistência.
A cor, para Michel, é uma linguagem ancestral que se expande além da tela, alcançando o cotidiano e as histórias que se enredam nos gestos, nos bordados, nas tramas. É um gesto que vai além do simples ato de pintar; é um movimento ritual que despacha ao mundo as vozes silenciadas, os traços apagados e as marcas deixadas pela diáspora negra. Em suas obras, as cores modelam o espaço, criando ambientes onde os insetos e flores são testemunhas, por vezes silenciosas, de uma narrativa que se recusa a ser esquecida, bem como os rostos que retrata. É, assim, um exercício de reconhecimento, uma tentativa de dar forma à memória que se faz presente, mesmo quando ausente nas consciências.
O museu, em sua obra, se transforma em um espaço de oferenda e de encontro e Cena7 desafia o museu a ser mais do que um repositório de monumentos e memórias estáticas; ele propõe que seja um espaço de de trânsito, onde as histórias se movimentam e se entrelaçam com a vida que pulsa fora de suas paredes. Suas inquietações se tornam palpáveis: como tornar a palavra corpo? Como despachar não apenas para um público, mas para um universo que transcende a lógica expositiva?
Nesse sentido, a cor é como um veículo para tornar visíveis as memórias invisibilizadas. Cada camada de tinta, cada traço, cada signo se torna uma pista da existência, uma forma de inscrever na cidade e nas telas os ecos de uma história que não pode ser silenciada. Ele não apenas representa símbolos, mas os reinventa, os transforma em elementos vivos que habitam suas composições, cor é espaço, cor é personagem e cor é linguagem. Já a palavra atribui outras trincheiras e alegorias para quem assiste à sua produção. Ainda à exemplo da pintura Ainda lembramos, em que o artista apresenta sua mitologia e convoca a audiência a um momento da memória que será restituída, o título nos impregna um sentido de resistência e comunidade, de continuidade e sobrevivência.
"Despacho da Cor e da Palavra" é, portanto, um ritual de construção de memórias. É um chamado para perceber as diversas referências ancestrais que habitam nosso cotidiano e que, muitas vezes, passam despercebidas. Cena7 convida o público a participar deste ato de despachar o esquecimento, a abrir os olhos para as tramas da cor, da palavra, para as histórias que se escondem nos signos e nos espaços. Ao pintar, ele constrói memórias que desafiam o tempo e a indiferença, inscrevendo e entregando ao mundo um despacho que é, ao mesmo tempo, um manifesto de existência e um convite à transformação.
Horrana de Kássia Santoz
AINDA LEMBRAMOS
MICHEL CENA7
2023