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O ARTISTA ENTRE A 
COR E A PALAVRA

O ARTISTA ENTRE A COR E A PALAVAMARIA LUIZA MENESES
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O ARTISTA ENTRE A COR E A PALAVRA

TEXTO CURATORIAL POR MARIA LUIZA MENESES 

As ruas. Territórios comuns de circulação, trânsitos, encontros. Espaços onde o pulsar da vida se faz, desfaz e refaz a todo instante, inconstante. Lugar do verbo, da palavra em ação. Terreno próprio à experiência de descobrir a si e ao outro, seja este quem for. Para a psicanálise, cada encontro com o outro é momento de construção do "eu", forma em transformação moldada pelas experiências. 

 

As ruas, avenidas, esquinas, becos e vielas, são os espaços tanto dos encontros inesperados quanto dos programados. Nelas, a cultura, propriamente o campo dos encontros, se organiza em batalhas de rimas, ocupações de dança, graffitis, música, teatro de rua e saraus, entre tantas outras manifestações. Inquieto por natureza e em constante busca de si, Michel CENA7 tomou as ruas como espaço de criação, reflexão, elaboração de si e do outro. 

 

Antes disso, o desenho e a escrita já habitavam suas práticas cotidianas, primeiro em bosquejos nos cadernos e carteiras da escola, seguidos das primeiras experimentações em paredes, com lápis, canetas e o que estivesse à disposição. A escola foi o primeiro lugar de contato com outros jovens inquietos, que o batizaram CENA, sedentos por expressão, que viam no gesto de riscar paredes, mesas e cadernos, formas simbólicas de transgredir, alterar, transformar as estruturas enrijecidas que os cercavam. 

 

Porém, foi com a mãe que aprendeu a riqueza da manualidade ao observá-la tecer bordados, produção que hoje é feita também para compôr as pinturas recentes do artista; e com o pai aprendeu a ler a cidade, decifrar os nomes das ruas e avenidas, espaço de contato com o mundo.

 

Jovem periférico no ABC Paulista ao final dos anos 90, período de latência e efusão do Hip Hop no Brasil, CENA7 fez das ruas ateliê, onde pintava flores e plantas, semeando a si e a sua produção pela cidade. Na década seguinte, tornou-se jardim um conjunto de palestras numa avenida de São Bernardo do Campo (SP), onde os passantes puderam ver o artista em ação durante o dia ou na madrugada ao longo de meses. Em seguida, acompanhou saraus, em especial o Sarau do Fórum, espaço de expressão de seus escritos poéticos. Cor e palavra nas ruas, encruzilhadas do friccionamento de saberes.

 

O projeto “Despacho da Cor e da Palavra” é composto por uma exposição com telas, desenhos e esculturas, uma oficina com o artista e um ciclo de palestras com pessoas importantes à trajetória de Michel. Ao longo do projeto, a palavra “despacho” caminha em sentidos opostos e complementares. Como forma simbólica, o despacho aparece como a prática da entrega, da oferenda daquilo que há de mais precioso e antigo na história do artista: a cor e a palavra. Apresenta ao público de cada etapa, perspectivas possíveis para ver, tatear, sentir e perceber as nuances entre o visível e o invisível daquilo que compõe sua sensibilidade e o afirma, antes de tudo, como pintor. 

 

Para ele, a cor é mais do que um elemento estético e pictórico, senão um corpo ativo e discursivo, autônomo e fundamental para o sentido de cada obra e na sua relação espacial. As cores assumem formas, convivem em confluência, assumem energias que ora sobressaem, ora se equilibram, com uma exímia pesquisa cromática realizada por CENA7. O palavra é o fio condutor de sua poética, presente desde os símbolos e signos que podem ser nomeados e aparecem frequentemente em suas pinturas: folhas, flores, retratos, seres fantásticos, garrafas, céus, entre outros; até os títulos das obras, verdadeiras construções poéticas.

 

Como ritual, partilhar a produção atual é um exercício de recusa ao determinismo que a categorização colonial impõe a todas as existências. No caso dos artistas negros limitando-os aos campos da religiosidade, da loucura ou da arte  periférica, com pouca ou nenhuma margem para a intelectualidade, experimentação, reflexão e abstração em outros campos do saber e da sensibilidade. Trata-se, neste sentido, de despachar a imaginação limitante sobre as possibilidades da cor e da palavra nas poéticas afro-brasileiras, romper insuficiências perceptivas e contribuir com o alargamento da história da arte brasileira. É colocar a mente, o corpo e a mão afro-brasileira como agentes decisivos das narrativas sobre si, ora pela fuga, ora pela inscrição radical na história.

 

No livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, o psiquiatra Frantz Fanon relata a angústia ao se deparar com o início de sua compreensão sobre o racismo. É notável o trecho em que releva não conseguir mais rir como recurso para desviar do incômodo. O ápice do desespero aparece na afirmação “queria ser humano, nada mais que humano” (p.128, 2020), momento que coloca em palavras a notável desumanização a qual estava suscetível como pessoa negra no mundo. 

 

Em “Despacho da Cor e da Palavra”, vemos Michel CENA7 apresentar-se sobretudo como pintor, onde a sua habilidade de pintura pode ser vista e apreciada como nunca antes. “Eu queria ser pintor, nada mais que pintor”, poderia dizer o artista que se distanciou de noções fixas sobre si, escolheu caminhos nas encruzilhadas e nos últimos anos assumiu o ateliê-casa coletiva como único espaço de criação. 

 

Pintor desde o graffiti, é no ateliê que encontra recursos para experimentar com profundidade aspectos estéticos, técnicos, pictóricos, simbólicos e conceituais que o tempo da rua não o permitia viver. Ainda assim, é possível ver nas pinturas características que conectam à sua produção urbana, o que evidencia o apreço, respeito e a elaboração do passado que caminha junto e pavimenta os caminhos para a investigação plena da arte e  de si.

 

Uma obra representativa destes aspectos é “Destino, fruição y cura” (2024). A pintura, composta por diversos elementos, apresenta uma mulher negra de olhos fechados, entre o sono e o transe, diante de uma pilha de livros, sobrepostos por uma maçã mordida, símbolo cristão do conhecimento. Ao redor, máscaras com fenótipos afro-indígenas, pássaros e plantas, aproximam a cena ao universo do candomblé e das cosmo-percepções indígenas sobre os seres e as humanidades. A geometria abre portais. Logo abaixo, a inscrição “hoje” é atravessada pelo mar revolto. 

 

Abaixo de tudo, dois retratos: à direita o filho do artista, conectado por silhuetas repetidas ao retrato à esquerda, com rosto de madeira, figura que se repete na poética de CENA7 e, pelo contexto, pode ser lida como um autorretrato. Madeira entalhada, sulcada. Toda a tela é adornada pelo vibrante bordado de Raquel Dias Ramalho, mãe do artista. Devido a riqueza de signos, “Destino, fruição y cura” pode ser lida em diversas chaves, o que evidencia a versatilidade da composição, acompanhada da fatura na pintura. Por fim, Despacho da cor e da palavra é o projeto que evidencia Michel CENA7 como pintor, educador e articulador. Apresenta a complexidade possível na pesquisa visual e simbólica contemporânea, ao mesmo tempo que conecta o artista a práticas de um cenário de arte afro-brasileira que vem sendo consolidado com maior destaque nas últimas 3 décadas. 

 

Para o público, é a oportunidade de adentrar no universo particular de um artista emergente, ver o processo em andamento, acompanhar a singularidade da transformação de alguém sensível às nuances dos

mundos, entre a cor e a palavra.

 

Maria Luiza Meneses

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DESTINO, FLUIÇÃO Y CURA

MICHEL CENA7 

2023

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